sábado, 23 de fevereiro de 2008

Foto: Arquivo Google
Vigiando o destino
Vai para o banheiro. Pega a toalha e a calça cinza. Sai sem camisa, como gosta. Pés descalços. Dez e quinze da manhã. O filho só relembra: “não vai esquecer, hein!” Ele sabe que o pedido é feito troféu para ser guardado na estante eternamente. Pôs o coturno sobre a meia grossa de forma a não machucar o calcanhar.

Sabe que tem um compromisso inabalável: chegar ao estádio quatro horas antes do clássico. Embarca no ônibus vinte minutos depois de enfrentar fila de espera. Senta antes da roleta. Imperceptível. Vê pela janela esquerda barracos, asfalto e desgraça. É sujeito pobre e honesto, pai de família e profissional exemplar.

O motorista não ajuda. Um acidente com três mortos (entre eles duas crianças), também não. Chega atrasado ao quartel. Mal ouve as orientações do tenente coronel, que repara e recrimina sua farda mal passada.

- Ser policial no Rio de Janeiro e com manter-se super-herói vinte e quatro horas, até dormindo -, confidencia a si próprio, relembrando as histórias do Super Man que lia na infância sofrida na Baixada Fluminense. Não vislumbra muita coisa além do autógrafo que tem que conseguir. É passaporte para fazer o sono do primogênito sereno.

Na central de policiamento do Maracanã, reúne-se com os demais. Traçam planos. Estratégias para conter as torcidas são minuciosamente detalhadas. Tudo definido, um grupo adentra o gramado. Não era seu caso. Fora designado para a arquibancada. Lado esquerdo das tribunas.

Justo com mais 14, faz parte do cordão de isolamento que impede o confronto de botafoguenses e flamenguistas.

- Ele nem imagina onde estou – pensa, sabendo que o “pimpolho” acompanha tudo pelo inseparável rádio de pilha.

Se vê com um personagem (coadjuvante, entende) de uma bela história. Em casa não é bem assim.

- Papai está lá no campo, pertinho dos craques. E vai falar com o camisa sete alvinegro – enaltece aos colegas de rua que, igualmente, torcem por algum dos dois clubes na final. E olha que todos o admiram e invejam.

Os times pisam o gramado. Ouvem vaias e aplausos. Jogadores sentem, intimamente, a desconfiança de mais de sessenta mil pessoas.

O PM carrega nas costas o peso da única escolha que a vida lhe proporcionou. É o que garante pelo menos oitocentos reais por mês.

Não teve muita chance. Pobre, foi o único entre oito irmãos a concluir o segundo grau e seguir profissão.

Já são quase 40 do segundo tempo. Impossível cumprir.

- Ele deve estar ouvindo o narrador enlouquecer com os dribles desse danado – antevê.

Na direita, o tal domina a bola. Pára. Não faz nada. A multidão emudece. Cinco segundos parecem eternidade.

- Caramba, é um demônio – arrepia-se, esticando o pescoço para trás e observando o único lance que pode durante toda a partida.

Trila o apito. Torcida vibra. Tem noção disso. Vê gente de vermelho e preto indo embora e o povo alvinegro gritando.

- Graças a Deus não precisei usar o cacetete – resigna-se.

Palco vazio, hora de partir. Não sabe, direito, como vai chegar. Tem uma idéia brusca, inusitada. Vai até a cabine e pede ao locutor uma assinatura. O retorno é repeteco do início da tarde. Chega consumido pelo exercício diário do ofício. Encara o moleque.

- Não é o que você esperava – diz, esticando a mão.

O menino olha e chora, copiosamente.

- Sei que não tenho habilidade. Nunca vou ser bom de bola – engole seco.

O militar grisalho não tem tempo de captar a mensagem.

- Tenho uma surpresa: passei no vestibular de Comunicação Social. E fiz porque sempre sonhei narrar grandes jogos – informa.

Agora vai ingressar na concorrida universidade pública com o carimbo do mestre que sempre admirou.

Um comentário:

Anônimo disse...

Parabéns Alvaro!

Maravilha de Post.

Aproveitando agradeço pelo carinho dos parabéns!